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quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

A LEI, OS NEGÓCIOS E O CÓDIGO DE HAMURÁBI ..


             A Babilônia tinha um bem desenvolvido sistema de finanças. Não tinham moeda cunhada, mas ainda antes de Hamurábi usavam, além do trigo e da cevada, lingotes de ouro e prata como padrões de valor e instrumentos de troca. O metal era pesado em cada transação. A menor unidade monetária consistia no shekel - meia onça de prata. Empréstimos eram feitos em mercadorias, em metal como garantia e a altos juros, fixados pelo Estado em 20% anuais para aqueles cuja garantia eram os metais e 33% para os em mercadorias. Cabia aos escribas a tarefa de enganar a lei e conseguir taxas mais altas. Não havia bancos, mas certas famílias poderosas, entretanto, dedicavam-se tradicionalmente ao negócio de emprestar dinheiro; também negociavam com terras e empresas industriais; e as pessoas que tinham fundos em depósito com tal gente, pagavam suas obrigações por meio de saques escritos. Também os sacerdotes emprestavam dinheiro, sobretudo para custeio da lavoura. Ocasionalmente a lei tomava o partido do devedor; se um camponês hipotecava suas terras e as via sem colheita por força de temporais ou "outro ato de Deus", não era obrigado a pagar os juros daquele ano. Mas quase sempre formulavam-se as leis com os olhos na propriedade, para garanti-la da melhor maneira; era princípio estabelecido na Babilônia que ninguém tinha o direito de tomar dinheiro emprestado sem por ele responsabilizar-se de maneira absoluta; o credor, portanto, podia escravizar o devedor, ou o seu filho, até que o débito fosse saldado, mas não por mais de três anos. A praga da usura assolou a indústria da Babilônia, como nos acontece hoje. 
        Era uma civilização essencialmente comercial. A maior parte dos documentos sobreviventes é de caráter comercial - vendas, empréstimos, sociedades, comissões, permutas, doações e legados, acordos, notas promissórias, etc.  Nestas tabletas encontramos abundante prova da riqueza babilônica e um certo espírito materialista que, como em civilizações posteriores, conciliava a ganância coma piedade. Vemos na literatura muitos sinais de vida ocupada e próspera, mas também, a cada passo, reminiscências de escravidão abaixo de todas as culturas. Os mais interessantes contratos de venda são os relacionados a escravos. Eram recrutados entre os prisioneiros de guerra, ou os apresados pelos beduínos errantes em suas incursões pelos estados próximos, e também produzidos pelo entusiasmo reprodutor dos próprios escravos. A maior parte do trabalho físico urbano era feito por eles, e também o serviço doméstico. As escravas viviam completamente à mercê de seus compradores, e tinham de os sustentar; estava subentendido que o senhor podia extrair delas a prole que quisesse, e as que não eram tratadas assim se sentiam desonradas. O escravo, com tudo que dele fosse, pertencia ao senhor; podia ser vendido ou empenhado por dívida; podia ser morto, se o senhor o achasse conveniente; se fugia, a ninguém era permitido açoitá-lo, e havia recompensa para quem o capturasse. Do mesmo modo que o camponês livre, era o escravo sujeito ao serviço militar e aos trabalhos públicos forçados. Em compensação o senhor pagava-lhe a conta do médico e conservava-o na doença, do desemprego e na velhice. O escravo podia casar-se com mulher livre, e nesse caso seus filhos nasciam livres; e ao morrer, metade de suas propriedades iam para a sua família. Podia ser posto em negócio autônomo, recebendo parte dos lucros, com os quais lhe era permitido resgatar-se; ou o senhor o alforriava por motivos de gratidão. Bem poucos tinham tal sorte. A grande massa se consolava com a reprodução, até se tornarem mais numerosos que os livres. Uma grande classe escrava movia-se subterraneamente e em ascensão, nos alicerces do estado babilônico.
                 Tal sociedade, sem dúvida, nunca cogitou alguma espécie de democracia; seu caráter econômico  impunha uma monarquia sustentada pela riqueza mercantil e pelo privilégio feudal, e protegida por uma judiciosa distribuição da violência da lei. A aristocracia territorial, gradualmente deslocava pela plutocracia comercial; ajudou a manter o controle da sociedade e serviu como  intermediária entre o povo e o rei. O rei transmitia o trono a qualquer um dos seus filhos, de modo que todos se consideravam pretendentes e mantinham claques de empenhados em seu acesso.  Dentro dos limites deste governo arbitrário a administração era conduzida pelos senhores e prepostos nomeados pelo rei. Tais homens recebiam conselho e eram fiscalizados por assembleias provinciais de velhos ou notáveis, que procuravam manter, mesmo sob a dominação assíria, uma orgulhosa autonomia local. 
              Cada administrador, e comumente o próprio soberano, reconhecia a autoridade do grande corpo de leis que lhes fora dado por Hamurábi e que, através de quinze séculos, apesar das mudanças, se manteve nas linhas essenciais. O desenvolvimento legal era da sanção sobrenatural para a secular, da severidade para a leniência, e dos castigos corporais para as multas. Nos primeiros tempos esteve em uso o apelo aos deuses por meio do ordálio.  O homem acusado de feitiçaria ou a mulher acusada de adultério tinham de lançar-se ao rio; se se salvassem, eram inocentes, e os deuses se punham sempre do lado dos bons nadadores. Se a mulher emergia viva, era inocente; se o acusado morria afogado, o acusador herdava os seus bens; em caso reverso, era ele quem recebia os bens do acusador. Os primeiros juízes foram os "sacerdotes", e até o fim da história babilônica os tribunais se reuniam nos templos; mas já nos dias de Hamurábi se haviam tornado seculares e só responsáveis perante o governo. 
                 A penalidade começou com a Lex-talionis, ou, a leu da equivalente retaliação. Sem um homem quebrava um dente ou uma perna de outro, também lhe quebravam o mesmo dente e a mesma perna. Se uma casa caia e matava o comprador, o arquiteto tinha de morrer; se o acidente matava o filho do comprador, o filho do arquiteto tinha de morrer; se um homem ofendia uma rapariga ou a matava, sua filha tinha de passar pelo mesmo. Gradualmente essas punições foram sendo substituídas por multas e pagamentos de danos; um pagamento em dinheiro liberava o culpado da pena de talião. Assim, um olho podia ser esmurrado por sessenta sikls de prata, e o de um escravo pela metade disso. Porque as penas variavam não só com a gravidade do delito, como ainda com a importância do ofensor e da vítima. Um membro da aristocracia era sujeito a penas mais severas do que as recaídas sobre o homem do povo, mas a ofensa a um aristocrata custava muito caro. O plebeu que feria outro plebeu pagava dez sikels; a mesma ofensa num nobre custava-lhe seis vezes mais. Disso passou a lei às bárbaras penas de amputação e morte. O filho que batia no pai tinha as mãos cortadas; o doutor cujo doente morria ou perdia um olho na operação, tinha os dedos cortados, por isso poucos se arriscavam ser médicos; a ama que substituía uma criança por outra, perdia os seios. A morte era a pena para grande número de crimes, tais como: violência carnal, rapto, banditismo, roubo, incesto, morte do marido pela mulher para casar-se com outro, abertura da taverna, ou mesmo a entrada de uma sacerdotisa em taverna, açoitamento de escravo fugitivo, covardia nas batalhas, malfeitoria nos cargos, desleixo e esbanjamento caseiro, etc. Com esses bárbaros processos, através de milhares de anos, aquelas tradições , hábitos de ordem e continência foram estabelecidos de modo a se tornarem base inconsistente da civilização. 
                 Dentro de certos limites, o Estado regulava os preços, salários e honorários. O que o médico podia cobrar estava previsto na lei; e no código de Hamurábi foram fixados salários para construtores, alfaiates, pedreiros, carpinteiros, barqueiros, pastores e trabalhadores agrícolas. Era os filhos que herdavam e  não a viúva; essa recebia o seu dote e ficava na chefia do lar enquanto vivesse. Não existia o direito de primogenitura; os filhos herdavam com igualdade, e deste modo os grandes domínios logo se subdividiam, o que embaraçava o acúmulo da riqueza. A propriedade privada em terras e bens era assegurada pelo código. 
              Não encontramos sinais de advogados na Babilônia; os "padres" serviam como notários e os escribas como redatores de tudo, madrigais ou testamentos. O queixoso defendia-se a si mesmo, sem nenhum luxo técnico. Nada de estímulo às demandas; o primeiro artigo do código reza com muita simplicidade: "Se um homem acusa outro de crime capital e não prova, o acusador receberá a morte". Há sinais de suborno e da manipulação de testemunhas. Uma corte de apelação, formada pelos "Juízes do Rei", tinha assento na cidade; a decisão suprema cabia ao rei. Nada existe no código sobre os direitos dos particulares contra o Estado; isto iria ser uma inovação européia. Mas os artigos 22 e 24 asseguravam proteção econômica. " Se um homem pratica banditismo e é capturado, sera morto; se não é capturado, o prejudicado pode, na presença de "deus", declarar a sua perda, e a cidade e o governador, dentro de cuja jurisdição o fato se deu, o indenizarão da perda. Se houver perda de vida, a cidade e o governador pagarão uma mina aos herdeiros". 
                Certamente muitas dessas leis seriam de grande utilidade em nossos violentos dias. As negligências do poder publico de hoje, certamente trariam grandes prejuízos aos cofres públicos. Que cidade moderna se sente bem governada a ponto de reembolsar as vítimas da negligência pública?  Olhando friamente esta questão fica a pergunta: progrediram as leis desde o tempo de Hamurábi ou apenas se multiplicaram? 

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